Bolsonaro gasta 1,2 mi em poços, mas não entrega água no Piauí
Oeiras foi um dos municípios contemplados por uma “força-tarefa das águas” anunciada pelo governo.
O jornal Estadão publicou nesta terça-feira (16) uma reportagem que mostra o drama de famílias de pequenos agricultores na zona rural de Oeiras, no Piauí, que ainda enfrentam a falta de acesso à água potável.
O município foi um dos contemplados por uma “força-tarefa das águas” anunciada pelo governo Jair Bolsonaro (PL) para o Nordeste e o norte de Minas. Dois anos depois, no entanto, poços abertos pelo programa estão lacrados. As obras pararam pela metade e bombas de retirada de água não foram instaladas.
A situação se repete em todo o semiárido nordestino. Ao longo de três meses, o Estadão analisou contratos do atual governo que somam R$ 1,2 bilhão para a construção de poços no sertão. Os documentos mostram irregularidades em pregões milionários feitos em menos de dez minutos e a reserva de recursos para abertura de novos poços sem que outros sejam concluídos. O resultado é um cemitério de poços abandonados.
O agricultor Francimário Borges de Moura, de 47 anos, foi um dos moradores do assentamento rural de Faveira do Horácio, em Oeiras, que se entusiasmaram quando o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) começou a cavar um poço de 212 metros de profundidade, em junho de 2020, perto da comunidade. O poço, porém, foi lacrado ainda naquele ano. As 24 famílias da comunidade planejavam fazer um plantio de caju de 24 hectares. “O poço tem uma vazão bastante forte, potente, daria conta”, lamentou à reportagem.
A água que chega à casa de Valmira Fernandes de Araújo, de 37 anos, no povoado vizinho da Mata Fria, sai de um antigo poço privado com alto índice de sais. É um risco para a saúde e para aparelhos domésticos. Mesmo para tomar banho é considerada inadequada pelos moradores. Em busca de água potável, a família de Valmira anda cerca de um quilômetro até chegar a uma nascente. Próximo dali há um poço lacrado com a inscrição “DNOCS 3/8/2020″. Mais um poço construído pela metade. “Eles abriram, mas não encanaram a água para nós. A gente fica triste, porque tem água doce perto, mas não pode usar”, afirmou Valmira.
No povoado da Alagoinha, o governo federal cavou um poço público, mas a bomba não é potente para abastecer casas que ficam na parte alta do lugar. “A água tem gosto de sal. Em vez de espumar (com sabão), ela vira um material diferente. A gente põe a água no corpo quando está tomando banho e pode passar o sabão dez vezes: todas as dez vezes sai sujo”, disse o morador Antônio Francisco da Silva Costa, o Antônio Marçal, de 54 anos.
Para quem mora na região mais alta, “dificilmente” chega água. A água retirada do poço é salobra, com gosto mineral forte e desagradável, levemente salgado. Já a água da nascente, considerada “boa”, não tem gosto, mas é turva de terra.
No fim do ano passado, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (Progressistas-PI), anunciou que a construção de poços seria uma marca do governo Bolsonaro no Nordeste. “O presidente nos deu a determinação de levar um grande programa, uma verdadeira força-tarefa para que a gente unifique diversos órgãos que são voltados ao sistema de abastecimento de água para a população”, afirmou.
Eles abriram, mas não encanaram a água para nós. A gente fica triste, porque tem água doce perto mas não pode usar”, disse Valmira.
A força-tarefa de abertura de poços envolveu três órgãos controlados por apadrinhados do próprio Ciro Nogueira e de líderes aliados do Planalto – a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), o Dnocs e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa).
No primeiro semestre deste ano, Bolsonaro participou da entrega de poços no Nordeste. As obras foram citadas no discurso do presidente durante o lançamento de sua candidatura ao Palácio do Planalto, em julho, no Rio. “Água em grande parte do Nordeste é uma realidade”, disse. “Também o nosso Exército, com a Codevasf, fura dezenas de poços todos os meses, levando dignidade a essas pessoas. Eu estou mostrando o que nós fizemos, o que pretendemos seguir fazendo.”
As licitações para a construção de poços no País são genéricas. Parte dos editais da administração federal não informa a localidade exata onde o poço deve ser perfurado. Há pregões em que nem o tipo de rocha é especificado. Para especialistas em auditoria de obras públicas, isso influencia no preço final do contrato e limita a concorrência de empresas de pequeno e médio porte.
A súmula 177, do Tribunal de Contas da União (TCU), destaca que é “indispensável” ter uma “definição precisa e suficiente” do objeto das licitações, para que haja “igualdade” entre os participantes.
A reportagem teve acesso a um processo administrativo da Codevasf para abertura de poços no Piauí. Em março e abril, a estatal do Centrão, como é conhecida, recebeu seis ofícios de prefeituras, de associações e de um sindicato com a indicação dos locais onde os poços deveriam ser perfurados.
O presidente do Sindicato Rural da cidade de Pio IX (PI), Luís Pereira de Alencar, contou que indicou quatro comunidades. Ele admitiu que não sabe quantas pessoas serão beneficiadas e que poços são furados, até mesmo, em propriedades privadas. Mesmo assim convenceu a estatal a fazer a obra. “Não tem como precisar”, disse.
Procurados, Bolsonaro e Ciro Nogueira não responderam. Dnocs também não se manifestou.
Fonte: piauíhoje