Sob pressão, ministra destrava verbas e faz acenos à oposição
Desde a última quarta-feira, R$ 677 milhões foram distribuídos a estados e municípios que atenderam a critérios estabelecidos pela pasta.
Mantida no cargo pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva a despeito das pressões do Centrão, e aconselhada a se fortalecer politicamente, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, destravou nos últimos dias o envio de verbas a bases eleitorais de parlamentares e ampliou o diálogo com integrantes da oposição. Desde a última quarta-feira, R$ 677 milhões foram distribuídos a estados e municípios que atenderam a critérios estabelecidos pela pasta.
Os recursos são provenientes do extinto orçamento secreto e, até então, ainda não haviam sido liberados, o que vinha gerando reclamações de congressistas. Em paralelo, Nísia já se reuniu com quadros do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, e fez elogios ao governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), outro opositor do chefe do Executivo federal.
A mudança na atuação, dedicando mais espaço à política, vem na esteira de apelos feitos por integrantes do próprio governo, mas também das investidas do Centrão. Esse grupo político planejava aproveitar a iminente troca no Ministério do Turismo para ampliar a dança das cadeiras e conquistar mais espaço no primeiro escalão. A maior parte da verba distribuída desde a semana passada, R$ 197,6 milhões, foi encaminhada para Alagoas, estado de caciques do Congresso, como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o senador Renan Calheiros (MDB-AL). A necessidade de melhorar a articulação, acelerando a partilha de recursos e atendendo mais parlamentares, já foi vocalizada por Lula.
Tanto o petista quanto Lira, contudo, negaram publicamente que tenha existido um pedido para Nísia ser substituída, mas no entorno do parlamentar havia quem externasse o desejo de mudança. O presidente e ministros, no entanto, vieram a público assegurar a continuidade dela no cargo. De lá para cá, o Planalto agiu para fortalecer Nísia. Hoje, Lula estará ao lado dela na Conferência Nacional de Saúde, em Brasília. Ontem, o titular das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, reiterou a manutenção, mas deu o tom: não basta ser um nome técnico, é necessário abraçar a política.
— A ministra Nísia é um símbolo de conhecimento da saúde pública, o que não a exime de fazer um papel de ampliação da articulação política. Acho que ela tem feito, como todos os ministros tem aprimorado cada vez mais isso — afirmou Padilha à CNN Brasil.
Em meio à pressão, Nísia recebeu demonstrações de apoio também de parlamentares da base e da sociedade civil, como um abaixo assinado com personalidades como o médico Drauzio Varella. Como mostrou o colunista Lauro Jardim, no domingo, na abertura da conferência que receberá Lula hoje, petistas como o senador Humberto Costa (PE), a deputada Érika Kokay (DF) e o ministro Luiz Marinho (Trabalho) fizeram desagravos.
A ideia no PT é fazer um “cordão de isolamento” para tentar minar os interesses do Centrão em assumir a pasta. Como mostrou O GLOBO, o comando da recriada Fundação Nacional de Saúde (Funasa) também vem sendo negociado com o PP, com o intuito de reduzir o assédio sobre a chefia do ministério.
Um dos gestos de Nísia no sentido da articulação foi em direção ao próprio Lira, com quem se reuniu em 19 de junho. Na ocasião, ela afirmou ao GLOBO que o presidente da Câmara tratou de assuntos técnicos, como o apoio a hospitais filantrópicos de Alagoas, e disse ainda ter uma relação boa e formal com o parlamentar. A ministra acrescentou que a gestão vem procurando acabar com “distorções” no direcionamento de verbas da pasta:
— As emendas deveriam servir para fazer investimentos, não para gastos de custeio. Hoje muitos municípios dependem das emendas para cobrir a folha de pagamentos. Estamos buscando corrigir e recompor o orçamento do SUS.
Na última sexta-feira, Nísia esteve com Lula em Porto Alegre, na inauguração de novos prédios do Hospital das Clínicas. Ao tratar do tema nas redes sociais, a ministra destacou o “diálogo republicano” e fez menção ao mundo político, incluindo nomes da oposição. “Saúdo o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo leite e sua secretária de Saúde, Arita Bergman, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, e toda a bancada federal do estado”, escreveu.
Reuniões com partidos como o PL, de Bolsonaro, também passaram a fazer parte da agenda. Ela tem, em média, 15 encontros por mês com a participação de parlamentares. Em maio, não chegou a receber congressistas de legendas de fora da base, mas, em junho esteve em ao menos quatro eventos com representantes do PP e do PL, incluindo o líder da sigla na Câmara, Altineu Côrtes (RJ).
— Ela tem uma visão macro do sistema de saúde, um bom orçamento e um time de secretários com conhecimento técnico — elogiou o deputado Zé Vitor (PL-MG), presidente da Comissão de Saúde da Câmara, que tratou o maior fluxo de liberação de recursos como uma consequência “natural”.
“Análise técnica”
Para além da ampliação do diálogo, o Ministério da Saúde decidiu liberar verbas. O movimento mais recente ocorreu ontem, quando uma portaria autorizou o envio de R$ 213 milhões. Esta é a primeira etapa do processo para que o dinheiro possa ser usada por prefeitos e governadores. Na semana passada, R$ 464 milhões já haviam sido empenhados, etapa posterior, quando o dinheiro é formalmente reservado para uso. Os valores, somados, representam 22% dos R$ 3 bilhões que a pasta “herdou” com o fim do orçamento secreto, encerrado por determinação do Supremo Tribunal Federal.
Não foram divulgadas as ações específicas contempladas, mas as regras do Ministério da Saúde preveem, por exemplo, destinações para construção, reforma e ampliação de unidades; renovação da frota do Samu; e compra de equipamentos odontológicos.
As verbas do ministério que têm sido liberadas com mais fluidez compõem um bloco de R$ 3 bilhões a que o ministério tem direito com o fim do orçamento secreto. Esse montante, por sua vez, integra um volume maior, de R$ 9,8 bilhões, divididos entre as pastas. Outros R$ 9,8 bilhões, por sua vez, foram convertidos em emendas parlamentares individuais, que têm pagamento obrigatório.
O valor herdado pela pasta é discricionário, ou seja, pode ser empregado de maneira livre pela gestão. No Congresso, no entanto, o recurso é tratado como passível de indicação parlamentar para redutos eleitorais, resultado de um acordo feito pelo Planalto ainda na transição de governo.
Nas redes, por exemplo, o deputado Dimas Gadelha (PT-RJ) disse que conseguiu R$ 2 milhões para São Gonçalo, sua base eleitoral. Entre os repasses dos últimos dias, o município é o segundo que mais receberá recursos, com R$ 32 milhões, atrás apenas de Maceió, com R$ 35 milhões. Em nota, o parlamentar afirmou que atua para promover ações que “melhorem a vida da população do Estado do Rio, em especial de São Gonçalo e toda Região Metropolitana”.
O Ministério da Saúde afirmou que todas as propostas apresentadas por estados e municípios vão passar por “análise técnica”. A pasta disse que as verbas não se referem a emendas parlamentares e que é “prematuro estabelecer comparações entre municípios e estados, uma vez que ainda haverá diversas rodadas para os programas do SUS custeados pelo governo federal”.
Fonte: O Globo