Bolsonaro manda ambulâncias para redutos de Sílvio Mendes
Municípios de aliados de ministro da Casa Civil estão entre principais beneficiados, segundo dados de 2021
Postado em frente a uma ambulância, o prefeito de Miguel Leão (PI), Roberto Leão (PP), agradece efusivamente pela entrega do veículo.
“Estou aqui em Teresina recebendo essa belíssima ambulância, fruto de emenda do nosso ministro Ciro Nogueira juntamente com nossa senadora Eliane Nogueira. E nós de Miguel Leão só temos a agradecer essa parceria que tem dado certo, que tem ajudado muitos municípios”, diz o prefeito da cidadezinha com cerca de 1.500 habitantes.
Os agradecimentos tanto ao ministro-chefe da Casa Civil do governo Jair Bolsonaro (PL-SP), Ciro Nogueira, e à sua mãe, senadora Eliane Nogueira, ambos do Progressistas, têm se repetido.
Ciro Nogueira é um dos principais líderes do centrão, bloco de partidos que dá apoio ao presidente Bolsonaro no Congresso em troca de cargos e verbas.
O Piauí tem sido inundado por ambulâncias, várias delas distribuídas a aliados do clã Nogueira. Isso tem sido turbinado pelo orçamento das chamadas emendas de relator, que se tornaram um dos principais instrumentos de negociação com o Congresso durante o governo Bolsonaro.
O presidente usa o mecanismo para angariar apoio no Legislativo para pautas do interesse do Planalto. A decisão sobre a distribuição dessas emendas ficou concentrada na cúpula do Congresso Nacional, o que desencadeou críticas pela falta de transparência na alocação dos recursos.
De acordo com sistema do FNS (Fundo Nacional de Saúde), o Piauí teve propostas aprovadas para financiamentos de 123 ambulâncias no ano passado –18% de um total de 683 para o país. É como se quase 1 ambulância de cada 5 financiadas fossem para o estado.
Para se ter uma ideia, Alagoas, com população parecida à do Piauí, teve apenas 11, sempre de acordo com o site do FNS. O estado do ministro também teve mais repasses aprovados para a compra deste tipo de veículo do que as regiões Centro-Oeste, Norte e Sul isoladamente em 2021.
Apenas Eliane Nogueira indicou R$ 8,2 milhões para compra de ambulâncias por meio das emendas de relator, segundo prestação de contas dela —no total, as indicações somam R$ 399,2 milhões.
O valor indicado por ela para ambulâncias daria para comprar 33 veículos do tipo estilo furgão ou 35 modelo pick-up.
Algumas das ambulâncias estão chegando a aliados neste ano, às vésperas da eleição. E a senadora costuma colher os louros políticos dos repasses, ao postar vídeos com agradecimento dos políticos ou anunciando novas cidades beneficiadas.
“Por ser uma área prioritária em meu mandato, fico muito feliz em dar boas novas. O Ministério da Saúde pagou mais de R$ 1,8 milhão em emendas para compra de oito ambulâncias. Elas irão reforçar o atendimento à população”, escreveu a senadora em suas redes sociais.
No post, ela anuncia que as cidades beneficiadas seriam Campo Largo do Piauí, Caxingó, Cocal de Telha, Colônia do Gurgueia, Dirceu Arcoverde, Inhuma, Milton Brandão e Morro Cabeça no Tempo —na época da publicação, apenas uma, a primeira delas, não era governada pelo PP.
Embora nem todas as ambulâncias financiadas no Piauí sejam relativas a emendas do clã Nogueira e aliados, o PP é claramente o partido com mais prefeituras beneficiadas –a reportagem encontrou ao menos 36 veículos aprovados para municípios da sigla apenas em 2021.
Roberto Leão, prefeito da cidade de Miguel Leão, além de ser do mesmo partido do ministro, aparenta grande proximidade política em suas redes sociais. À Folha ele disse que recebeu a ambulância após fazer um ofício pedindo socorro.
“No meu caso, eu fiz uma solicitação através de um ofício. Eu o apoiei para senador então eu posso pedir socorro para o senador, como eu faço com meus deputados federais também”, afirmou Leão.
“Piaui tem três senadores. Como o município que sou prefeito é pequeno, os outros dois senadores nem olham, não tem retorno político”.
Leão afirma que esse tipo de ambulância é uma grande demanda nas cidades do interior, uma vez que não há hospitais em boa parte delas e é necessário fazer transferências constantes.
Ele ainda criticou a saúde estadual, governado pelo PT, atualmente adversário de Nogueira, por não cumprir o cofinanciamento da saúde, o que aumentaria a necessidade de os prefeitos buscarem mais recursos.
Em Miguel Leão, a nova ambulância se juntará a uma outra, conseguida em 2017, segundo o prefeito.
Os repasses para compra deste tipo de equipamento acontecem pelo chamado sistema fundo a fundo, no qual o FNS deposita os valores para as compras na conta dos fundos municipais de saúde. Devido à praticidade e rapidez, boa parte das emendas de relator vai parar no FNS.
Para que o valor seja pago, é preciso aprovação da cúpula do Ministério da Saúde, que publica uma portaria. Na prática, é aí que entraria o negociador político do governo, o próprio ministro Ciro Nogueira, que daria o OK para que os empenhos de fato ocorram, segundo políticos ouvidos pela Folha.
Desde que Nogueira assumiu o ministério, o número propostas de ambulância financiadas pelo FNS em seu estado também deu um salto— foram 27 em 2017, 11 em 2018, quatro em 2019, nenhuma em 2020, até chegar a 123 no ano passado, quando o político do PP assumiu o posto no Executivo.
Os modelos contabilizados no levantamento são as chamadas ambulâncias tipo A, as mais simples e mais requisitadas, com valores entre R$ 235 e R$ 249 mil.
Adversário político de Ciro Nogueira no Piauí, o ex-ministro da Saúde do governo Dilma Rousseff (PT) e senador Marcelo Castro (MDB) disse ao jornal O Globo que o ministro chegou a barrar o empenho de recursos indicados por ele.
“Em 40 anos de vida pública, nunca escolhi partido ou parlamentar para destinar recursos, quando ocupei cargos importantes.”
“Quando fui ministro da Saúde, por exemplo, enviei recursos para todos as prefeituras que estavam aptas a receber as verbas do Ministério”, afirmou à Folha, ressaltando que fica feliz com “qualquer destinação de recursos para o Piauí, seja de qual grupo político partir”, devido à carência do estado nesta área.
Um ponto destacado por quem conhece o sistema fundo a fundo turbinado por emendas é que pode abrir brecha para casos como o do deputado Josimar de Maranhãozinho (PL-MA), flagrado com dinheiro e suspeito de desviar recursos da Saúde viabilizados por meio de emendas parlamentares —ele nega.
Para o médico sanitarista e professor da FGV Walter Cintra Ferreira, a análise dos gastos em saúde deveria ser técnica e transparente.
“Quando você distribui um equipamento público, o critério da distribuição deveria ser público e prestando contas por que está mandando ambulância para o município A e não estou mandando para o município B. Essa história das emendas está levando a este tipo de distorção”, diz.
Ferreira afirma que o critério é casuístico e ineficaz.
“Temos um recurso para publicar na saúde que deveria ser realizado de maneira a provocar o melhor impacto possível nas condições da saúde da população e olhando para as condições de desigualdade de cada município. Quando isso é esquartejado pelos deputados e cada um distribui para o seu território eleitoral, é um desserviço”, afirma.
Questionado, o Ministério da Saúde afirmou que todo o recurso liberado “passa por uma rigorosa análise técnica realizada por servidores qualificados das secretarias finalísticas”.
No entanto, a pasta afirma que “não existe nenhuma influência de gestores da pasta nas indicações das chamadas emendas de relator do Orçamento, o que é de competência exclusiva do Congresso Nacional”.
A reportagem procurou o ministro Ciro Nogueira e sua mãe, Eliane, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.