Brasil completa dois meses sem titular à frente da Saúde
Para funcionários e cientistas, pasta está à deriva
Quase dois meses após a saída do ex-ministro Nelson Teich, o Ministério da Saúde sob comando interino e gestão militar mudou protocolos e rotinas, além de enfrentar dificuldades para cumprir algumas promessas, como a distribuição de 46 milhões de testes. Com a chegada dos militares à pasta, representados no posto máximo pelo ministro interino, Eduardo Pazuello, o ministério mergulhou em um clima interno de medo e desconfiança. Na visão de funcionários, cientistas e gestores públicos, a pasta está à deriva justamente quando deveria conduzir o enfrentamento à crise sanitária mais grave do século.
Pazuello viu a curva de casos e óbitos crescer vertiginosamente durante os 61 dias de sua gestão. Em 14 de maio, o Brasil tinha uma média de 9.627 casos diários; ontem, eram 36.650. Em relação aos óbitos, a média passou de 686 mortes para 1.056 no mesmo período.
É uma situação sem precedentes no mundo. As entidades globais não conseguem entender como o país que é o segundo em número de óbitos do mundo não tem um ministro efetivo, apenas um interino que não se pronuncia e não transmite nenhum tipo de mensagem num momento crítico do país — diz Miguel Nicolelis, coordenador do comitê científico do consórcio de governadores do Nordeste.
Ao longo da gestão de Pazuello, em alguns casos, a pasta, que deveria seguir à risca evidências científicas, fez claramente a vontade do presidente Jair Bolsonaro, como nas orientações sobre o uso dos remédios cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, e na frustrada tentativa de alterar a forma de divulgação dos dados da doença. Nesse tempo, o ministério também passou a recomendar que as pessoas passem a buscar unidades de saúde mesmo com sintomas leves.
Logística melhorou
Embora gestores de saúde dos estados apontem que houve uma melhora na distribuição de produtos necessários no enfrentamento à doença, os secretários alertam que a distribuição continua abaixo do ideal, em especial em relação a testes para detectar o novo coronavírus. Em 24 de junho, o Ministério da Saúde reafirmou o plano da gestão Teich de distribuir 46 milhões de testes à população. Mas, segundo o portal “Localiza SUS”, do próprio ministério, foram distribuídos 12,5 milhões de testes até ontem, ou seja, apenas 27%.
A pasta afirmou à reportagem que “parte dos testes ainda estão com o Ministério da Saúde por questão logística, pois os estados não possuem capacidade para armazenar uma grande quantidade de uma vez só”.
Citou também a necessidade de “acondicionamentos corretos, com níveis de temperatura específicos, para não haver possíveis perdas” e afirmou que os demais testes “serão distribuídos à medida que os estados tiverem capacidade de armazenamento adequada, bem como de utilização”.
Quando ainda era secretário executivo, às vésperas de assumir o ministério, Pazuello anunciou em coletiva a compra de cerca de 16 mil respiradores que teriam a entrega diluída entre os meses de maio, junho e julho. Até o momento, no entanto, de acordo com a pasta, dos 16.252 ventiladores pulmonares menos da metade, ou 6.549 foram entregues. Em resposta ao GLOBO, a pasta afirmou que as entregas têm ocorrido de acordo com a capacidade de produção das empresas. Os cinco contratos firmados pelo órgão para disponibilização do equipamento totalizam R$787,5 milhões. A pasta destacou que embora esteja utilizando seu poder de compra devido à crise sanitária, a aquisição desses equipamentos é responsabilidade dos estados.
Protocolo da Cloroquina
Teich deixou o governo em 15 de maio, em meio a divergências em torno do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina. Não há comprovação científica da eficácia dos remédios no combate ao novo coronavírus, mas Bolsonaro insistia no seu uso até mesmo nos casos leves. Já o Ministério da Saúde autorizava sua utilização apenas em pacientes em estado grave.
Com a queda de Teich, o então secretário-executivo, o general Pazuello, assumiu interinamento o posto. Apenas cinco dias depois, a pasta editava um novo protocolo, autorizando o uso da cloroquina e hidroxicloroquina para pacientes em todos os estágio da doença. A necessidade de prescrição médica e concordância do paciente continuaram sendo exigidas. Depois disso, a pasta passou a informar haver vários estudos favoráveis ao uso dos remédios em pacientes com sintomas leves, embora nenhum deles na parte superior da chamada “pirâmide de evidências”, ou seja, não passaram pelas duas etapas que reúnem com mais segurança evidências favoráveis à aplicação dos medicamentos.
No começo de junho, por pressão de Bolsonaro, o Ministério da Saúde sob comando militar fez uma série de mudanças na forma de divulgação dos números da doença, que puseram em xeque a credibilidade das estatísticas oficiais. Os dados, que eram divulgados às 19h, passaram a ser publicizados apenas perto das 22h, e com isso, segundo disse o próprio Bolsonaro, “acabou matéria do Jornal Nacional”.
O Ministério da Saúde também passou a publicar apenas a quantidade de casos confirmados nas 24 horas anteriores, sem informar o total acumulado. E anunciou que passaria a divulgar a quantidade de mortes ocorridas naquele dia. Como entre os óbitos confirmados nas últimas 24 horas há sempre casos ocorridos em dias anteriores, a mudança faria com que os números parecessem menores do que realmente são.
Todas as mudanças feitas ou em planejamento foram suspensas graças a uma decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ele determinou que o ministério retomasse a forma tradicional de divulgação dos números, considerando todos os casos confirmados nas últimas 24 horas, e informando o total acumulado.
Em caso de sintomas, procure um médico’
Na última quinta-feira, mais uma mudança relevante nas orientações para enfrentamento à pandemia de Covid-19. O Ministério da Saúde passou a recomendar que pacientes com sintomas leves procurem atendimento médico, em vez de ficarem em casa. O secretário-executivo da pasta, Élcio Franco, ele próprio um militar, explicou que o tratamento precoce ajuda na recuperação do paciente e diminui o uso de leitos de UTI. Antes, a orientação era procurar atendimento quando o quadro já era mais grave.
— O Ministério da Saúde adotou uma nova orientação para o atendimento dos casos de Covid, mudando sua estratégia do “fique em casa” para “em caso de sintomas, procure um médico, procure um profissional de saúde”. Assim que sentirem os sintomas, os pacientes devem buscar esse atendimento mesmo que sejam sintomas leves, porque nós aprendemos ao longo da pandemia que ao aguardar em casa, os pacientes chegam aos hospitais em quadros clínicos mais agravados e que alguns casos dificultam a reversão do seu estado clínico. Ele evolui para UTI muito rapidamente — explicou na quinta o secretário-executivo, que é o número dois do ministério.
O Ministério da Saúde informa que “já foram credenciados 807 Centros de Atendimento em 767 municípios para enfrentamento da pandemia causada pelo coronavírus. Os Centros de Atendimento são estruturas auxiliares, que servem para identificação precoce dos casos, com atendimento adequado das pessoas com síndrome gripal (SG) e Covid-19. Estes estabelecimentos temporários possibilitam que os demais serviços oferecidos nas unidades de saúde da Atenção Primária, como cuidados com a saúde da criança, consultas de pré-natal, acompanhamento de pessoas com doenças crônicas como diabetes e hipertensão, sejam mantidos e retornem à rotina habitual. Além disso, 57 municípios com favelas foram credenciados para a implantação dos Centros Comunitários”.
Para atender os pacientes com os chamados leitos intermediários — que têm estruturas mais simples do que uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e devem receber pacientes que não estão em estado grave da doença, mas precisam de suporte de oxigênio —, o Ministério da Saúde informou que recebeu 467 solicitações de habilitação até o momento. “Todas as solicitações recebidas estão com pendências, como documentação exigida para habilitação e falta do cadastro no Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES)”, explica a pasta.
Internamente, a entrada de vários militares deixou o clima mais tenso e desconfiado. Funcionários do ministério dizem que o ambiente já tinha piorado desde a saída do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, antecessor de Teich, mas que isso ganhou novos contornos com a chegada dos militares, a ponto de servidores temerem que seus celulares estejam grampeados. Outro problema é a sensação de que a pasta está à deriva, sem direção clara e com vários cargos de chefia vagos.
Nas reuniões sobre a pandemia, disse ao GLOBO um funcionário na condição de anonimato, os especialistas da pasta passaram ser contestados com senso comum e opinião, e não com dados técnicos. Houve até mesmo relatos de ameaças de abertura de processos administrativos contra servidores. Em um cenário de vigilância, os servidores afirmam que estão “aprendendo a lidar” com os militares, o que inclui não contestá-los uma vez que, segundo técnicos, não há espaço para o contraditório.