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‘Que engulam seu racismo’, diz Franzé, 1º negro a presidir Alepi

Historiador e pesquisador de identidades étnicas e afro-brasileiras Túlio Henrique Pereira destaca que a autodeclaração é fundamental no enfrentamento ao racismo estrutural e resultado de uma disputa política travada pelo movimento negro espalhado pelo mundo, especialmente nas Américas.

O novo presidente da Assembleia Legislativa do Piauí (Alepi), Franzé Silva (PT), tem sido alvo de questionamentos por sua autodeclaração racial. Na última quarta-feira (1º), durante solenidade de posse, o deputado estadual se declarou o primeiro negro a ocupar o cargo no estado. Segundo ele, os questionamentos são sinais do próprio racismo pelo desconhecimento das características afrodescentes.

A afirmação reacendeu o debate sobre negritude e colorismo nas redes sociais. O g1 conversou com Franzé Silva e convidou o historiador e pesquisador de identidades étnicas e afro-brasileiras Túlio Henrique Pereira para tirar dúvidas sobre o tema.

Autodeclaração é direito

O autorreconhecimento da população negra é importante devido ao contexto histórico de desigualdade racial no Brasil. Segundo Túlio Henrique Pereira, é um método de enfrentamento ao racismo estrutural, uma vez que possibilita a promoção de políticas públicas e ações específicas.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) considera o número de negros como a soma de brasileiros que se autodeclaram pretos e pardos. Os dados mais recentes apontam que, entre 2012 e 2021, a parcela da população que se diz preta e parda saltou de 53% para 56,1%. No mesmo período, o percentual de pessoas que se autodeclaram brancas caiu de 46,3% para 43%.

“A autodeclaração é resultado de uma disputa política travada pelo movimento negro espalhado pelo mundo, especialmente nas Américas. Enquanto instrumento jurídico, foi sancionada pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, em 1989. Não prevê aspectos de assimilação, mas do reconhecimento de autoidentificação de si, e passa a ser útil para políticas indigenistas e afro-diaspóricas”, explicou o historiador.

Em entrevista, Franzé Silva, formado em ciências contábeis pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) (leia biografia completa ao fim da reportagem), contou que também frequentou, por aproximadamente dois anos, o curso de história na instituição, onde se aprofundou em pautas raciais. O recém-eleito presidente da Alepi alertou que traços físicos das pessoas pretas e pardas são característicos.

No Brasil, diversas instituições de ensino e bancas de concursos públicos, por exemplo, criam comissões de verificação da autodeclaração racial para análise de aspectos fenotípicas, a fim de combater fraudes.

“Muita gente não conhece o que caracteriza um afrodescendente. Não é só a cor da pele, mas os traços. Eu me considero um afrodescendente pela questão facial. Tenho um nariz característico de negro, uma boca característica de negro e a cor característica de negro. Esse questionamento ainda é ranço do racismo e tem que acabar. O fato de que haja uma polêmica sobre isso é um fato formal e real do racismo no Brasil”, afirmou.

Franzé lamentou os questionamentos feitos sobre sua negritude.

“As pessoas que não querem considerar isso, que engulam seu racismo ou botem pra fora. O que não podemos é ter pessoas que queiram continuar com esse preconceito. Isso atrapalha uma sociedade unitária, uma sociedade que quer igualdade entre todos. Fico com muita tristeza ao ouvir alguns comentários”, completou o deputado estadual.

Identidade racial não se restringe à cor da pele

O historiador Túlio Henrique reforçou a ideia e relembrou o pan-africanismo, movimento social, político e filosófico, que defende a união entre pessoas africanas e afrodescendentes na luta por emancipação e autoafirmação.

“Desde os anos 1970 já se discute o fato de a identidade racial não poder ser definida apenas pela cor da pele. Há discussões muito profundas na antropologia e na sociologia acerca dos marcadores raciais, e estas incluem aspectos étnico-culturais. Defendo, por enquanto, um conjunto fenotípico para demarcar identidades raciais, e esses incluem cor da pele, textura dos cabelos, formato do nariz, desenho dos olhos, pelos corporais e outros”, pontuou.

Ele defendeu ainda que é preciso considerar a diversidade entre pessoas negras.

“É importante compreendermos que no continente africano, no seu processo histórico ancestral, já existiam pessoas africanas não retintas. É preciso acabar com essa ideia de que africanos são uniformemente pretos retintos. Não são. Há africanos de olhos azuis, verdes e castanhos. Há africanos com peles mais claras e retintas, narizes afunilados e de abas avantajadas. O continente africano é plural, diverso”, ressaltou.

Diferenciação entre negros de pele clara e retintos: o que é colorismo?

O sistema racial estabelecido ainda no período colonial no Brasil criou uma hierarquia social de privilégios. Define-se como colorismo a forma de diferenciar a cor de pele da pessoa negra e, por meio desta separação, determinar como ela deve ser tratada.

Conforme Túlio Henrique Pereira, a partir do século 16, é possível observar que o colono branco, responsável por criar hierarquias raciais e sociais, percebeu que elas acirravam as disputas entre o povo negro. O colono decidiu, então, “promover mobilidade às pessoas mais claras e manter imóveis os retintos”.

O historiador define:

“Colorismo são os dispositivos sociais encontrados pela branquitude para promover disputas e acirrar a hierarquização entre negros, promovendo, a partir do processo de eugenia, o embranquecimento e a miscigenação dos descendentes de africanos retintos. De modo a exaltar, em circunstâncias de conveniência, aspectos que reforçam a superioridade da branquitude. Ou seja: diz-se que o negro de pele clara, cabelos ondulados e fenótipos pouco negroides são mais bonitos ou mais inteligentes, mas estes o são porque se parecem mais com os brancos”, destacou.

O historiador avaliou que o colorismo afeta tanto as pessoas pretas quanto pardas, pois ambos sofrem discriminação por constituir a parcela dos não-brancos. Entretanto, vivenciam níveis diferentes de racismo ao longo da vida.

“Colorismo é o modo como a população parda reivindica o seu direito à autodeclaração, apropriando-se de sua potência afro-ancestral, que, por conseguinte, vai apagar ou desestabilizar, em certa medida, a potência do sujeito preto retinto. Ambos serão alvo do encarceramento massivo, porém o preto retinto não deixa brecha para a desconfiança da sua inocência. Ele também terá mais dificuldades de ascender na carreira, receber o melhor salário ou fazer parte da festa da empresa no condomínio fechado”, explicou.

“Ele [colorismo] nos denuncia a constante fuga para o caminho do embranquecimento e pela manutenção do apagamento do preto retinto. Aos negros de pele clara, o uso da afro-conveniência é uma das principais críticas em bancas de heteroidentificação racial, por exemplo. Todavia, não podemos pessoalizar essas disputas e jogarmos nas costas das pessoas pardas o fardo do seu embranquecimento. É preciso reiterar que a responsabilidade continua sendo do colonialismo protagonizado pelos brancos”, concluiu.

Fonte: G1 Piauí 

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