Por medo de agressor, vítima fugiu do Piauí após ser agredida e estuprada em cárcere privado
A irmã da vítima recebeu autorização da vítima para falar sobre o caso com o g1. Após o ciclo de violência vivido, a vítima não fala sobre o que passou, nem mesmo com a família.
Três anos após o rompimento do ciclo de violência doméstica vivida ao longo de 20 anos de relacionamento, Elizane Sousa tenta seguir a vida longe do Piauí. Antes proibida de trabalhar, hoje ela é caixa de um supermercado em outro estado, e o filho de 22 anos é vendedor no mesmo estabelecimento. (O estado em que a família mora não foi revelado para preservar a identidade das vítimas)
Dados da Secretaria de Segurança Pública do Piauí (SSP-PI) indicam que nos últimos três anos, aumentou em 25% o número de denúncias de casos de estupro. Em todo o ano de 2022, 1198 casos de estupro e estupro de vulnerável foram denunciados, já em 2020, foram 956 denúncias dos mesmos crimes.
Eliane Sousa, irmã da vítima, contou ao g1 como está a rotina de Elizane, que por medo e muitos traumas, precisou sair de Altos, 40 km de Teresina, junto com o filho que teve com o acusado, após a vivência de um relacionamento agressivo. A decisão foi tomada mesmo com a condenação do homem a 20 anos em regime fechado pelos crimes de estupro, agressão, torturas físicas e psicológicas.
“Quando eles moravam juntos, ele não permitia que ela trabalhasse fora, eram os meus pais que ajudava. Hoje ela trabalha, tem a independência e é a provedora da casa. Hoje ela tem autonomia, hoje ela se considera uma mulher vaidosa, quem tem o próprio dinheiro, que compra as suas coisas. Ela arrumou a casa dela do jeito que queria. Hoje ela tá vivendo a vida que nunca teve, vivendo outra vida” disse a irmã.
Eliane explicou ainda que a irmã prefere não falar sobre o que passou, nem com a própria família, e que recebeu de Elizane autorização para comentar o caso.
“Minha irmã não toca mais nesse assunto, ela disse que não consegue e que prefere nem lembrar. Ela quer colocar como esquecido na cabeça, até conosco da família. Nem com os meus irmãos ela fala muito. A gente respeita o lado dela, mas infelizmente foi uma das sequelas que ficou”, lamentou a irmã.
Ciclo de violência
Segundo as informações da polícia, entre os dias 12 e 15 de dezembro de 2019, Elizane foi mantida em cárcere privado pelo ex-companheiro, sendo submetida a torturas físicas, violência sexual. A polícia informou também que o homem filmou diversas cenas de Elizane sendo violentada.
Nos vídeos, segundo a denúncia, a vítima foi obrigada a dizer que era a culpada pelas agressões, já que o homem estaria se vingando por acreditar que teria sido traído. Ele também teria obrigado ela a gravar trechos onde se despedia do filho, que tem com o suspeito, porque ele dizia que iria matá-la.
Ela relatou ainda que foi agredida com murros, chegou a ser amarrada sem roupas em uma árvore. A vítima contou que o suspeito usou uma corda para agredi-la, cortou seu cabelo, jogou gasolina em seu corpo e ameaçou atear fogo.
Para evitar que fosse denunciado, segundo a vítima, o suspeito teria saído com ela de casa, usando uma faca para mantê-la como refém, e ido para a frente do Posto de Policiamento Ostensivo (PPO) da cidade.
Em momento de distração do agressor, Elizane conseguiu correr até o Posto e denunciou o que estava acontecendo. O homem foi preso em flagrante e encaminhado à Polícia Civil.
Cicatrizes no corpo e na alma
Para Eliane, as agressões vividas pela irmã ao longo dos anos marcaram profundamente toda a família. Elizane ainda carrega cicatrizes no corpo das torturas a que foi submetida durante os três dias em que foi mantida em cárcere sob diversos tipos de violência, e faz acompanhamento psicológico para tratar os traumas.
Os pais da vítima sofrem com a ausência da filha, que era a única a morar próximo a eles. Segundo Eliane, a mãe atualmente enfrenta depressão, apresentou problemas de pressão alta, além de diabetes e outros problemas.
“Minha mãe hoje em dia, depois de tudo que aconteceu, ficou mais doente, porque ela já tinha problemas de saúde. A filha que ela tinha próximo era a minha irmã, porque mesmo minha irmã vivendo aquele sofrimento, era ela quem cuidava dos meus pais”, contou Eliane.
O rompimento definitivo do casal só aconteceu com a prisão do ex-companheiro, indiciado por estupro, ameaça e tortura contra ela. Sob constante ameaça de morte e de que sua família fosse assassinada, ela tinha medo de denunciar.
Condenação de acusado
Em 2021, o agressor de Elizane foi condenado, pelos crimes de tortura e estupro, ao cumprimento da pena de 21 anos, 10 meses e 27 dias de reclusão em regime fechado. Além do pagamento de R$ 50 mil reais à vítima como indenização.
Eliane falou que a vítima e toda família recebeu a condenação como um misto de sentimentos.
“Muitas coisas passaram pela cabeça dela naquele momento, liberdade, medo, alegria, ansiedade. E a nossa família recebeu o resultado dessa condenação com um alívio no coração de saber que a justiça foi feita”, comemorou a irmã.
O que dizem as leis?
A defensora pública e coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar da Defensoria Pública, Lia Medeiros, explicou como a legislação pode atuar nos casos de violência sexual.
“Com relação à legislação referente ao crime de estupro, nós temos tanto a questão da legislação penal, que se refere ao processo, a ação penal que vai existir contra a pessoa que está sendo acusada de estupro, como também todo o aparato a ser oferecido a mulher em caso de violência sexual”, explicou Lia.
Entre as que asseguram a vítima em caso de violência sexual, além da Lei 11.340 Lei Maria da Penha, a defensora citou a de número12.845/2013, chamada Lei do Minuto seguinte.
“Essa lei garante a essa mulher que sofreu violência sexual todos os cuidados com a saúde dela, para evitar que seja contaminada com alguma infecção sexualmente transmissível, que sejam tomadas todas as providências com relação à contracepção de emergência, inclusive ofertada a questão do aborto legal, o aborto permitido em lei. Basta que ela procure o serviço de saúde informando que foi vítima de violência sexual”, pontuou a defensora pública.
A defensora elencou ainda as leis Lei 13.721/2018 Preferência no IML, e n° 14.245/21 Lei Mariana Ferrer, além dos artigos Arts. 213, 217A, 226 do Código Penal e Art. 128, que assegura a mulher o direito ao aborto legal.
“A gente sabe que tanto o estupro, quanto o estupro de vulnerável previsto no Artigo 213 e o outro no Artigo 217A, ele traz o crime tipificado e trazem também as penas ao acusado. No Artigo 226 tem as causas do aumento de pena, se tem a relação doméstica com o agressor, ou se foi um estupro coletivo. Então tudo isso são circunstâncias que podem agravar e na hora do processo devem ser consideradas”, finalizou ela.
Fonte: G1 Piauí