Notícias

Brasil tem recorde de feminicídios e alta de crimes contra mulheres

Na contramão da tendência de queda nas mortes violentas, país registrou mais feminicídios em 2022, com 1.437 vítimas, um aumento de 6,1% em relação ao ano anterior.

Seria o primeiro dia de aulas das crianças na nova escola, em 31 de outubro do ano passado. Suellen Rodrigues, de 29 anos, havia acabado de se mudar para Curitiba na tentativa de fugir das agressões e ameaças de morte do ex-companheiro, o advogado criminalista e ex-policial civil Jaminus Quedaros de Aquino, com quem ficou por 12 anos. Quando desceu do carro com Anne, de 8 anos, e Pyetro, de 11, o homem correu até eles. Depois de uma discussão rápida, atirou na mulher e saiu. Com a vítima já no chão, voltou e disparou mais: quatro tiros ao todo. Suellen morreu na frente dos filhos. Segundo familiares, a justificativa é a clássica dos casos de feminicídio. Ele não aceitava a separação.

— Quando o primeiro filho nasceu, ele começou a ser agressivo. Tinha um ciúme doentio do filho, por ser piá (menino), não aceitava dividir a mulher. Ela tentou terminar, mudou de cidade, mas sempre que fazia boletim de ocorrência algum colega policial contava para ele. A gente não acreditava que ele seria capaz — afirma a estudante Lucielly Rodrigues, de 33 anos, irmã de Suellen que ficou com a guarda provisória das crianças. Ela tem outras quatro filhas.

Recorde de feminicídio: a estudante Lucielly Rodrigues com as quatro filhas e dois sobrinhos que assumiu depois do assassinato da irmã Cassio França

Na contramão da tendência de queda nas mortes violentas intencionais, o Brasil teve um recorde de feminicídios em 2022, com 1.437 vítimas, um aumento de 6,1% em relação ao ano anterior. O país registrou ainda um crescimento de todos os indicadores de violência contra a mulher, como lesão corporal (2,9%), concessão de medidas protetivas (13,7%) e ameaça (7,2%), segundo o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado nesta quinta-feira.

Por definição, feminicídio é toda morte decorrente de violência doméstica ou motivada pela discriminação da “condição” do sexo feminino, conceito usado pela primeira vez na década de 1970. No Brasil, uma lei de março de 2015 alterou o Código Penal Brasileiro e incluiu o feminicídio como uma das formas qualificadas de homicídio.

Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que o dado de feminicídios no Brasil é bastante subestimado. Embora tenha havido um aumento das notificações por parte das vítimas, ainda há um problema crônico de classificação do crime pela Polícia Civil. A proporção nacional de feminicídios em relação ao homicídio de mulheres é de 35,6%. Em alguns estados, como Roraima e Ceará, o indicador gira em torno de 10%, o que sugere uma distorção.

— Em alguns estados, a polícia não calcula da forma adequada. Quando olhamos os boletins de ocorrência, vemos muitas mortes classificadas como homicídios de mulheres cujos autores eram ex-companheiros. E isso é feminicídio — afirma Samira. — Não se trata de um fetiche estatístico, isso compromete a punição do autor, que pode pegar uma pena maior. A polícia, de certa forma, está contribuindo para a impunidade.

Segundo os novos dados do Fórum, 61,1% das vítimas do feminicídio são negras, 71,9% têm entre 18 e 44 anos e 70% foram mortas dentro de casa. Em 53,6% dos casos, o autor é um parceiro íntimo. Nos outros 19,4% e 10,7%, um ex-companheiro e familiar, respectivamente.

No caso de Suellen, a medida protetiva contra o ex-marido não foi suficiente para contê-lo. Ele chegou a descumprir duas vezes. Num ato de desespero, Suellen foi ao fórum da cidade e questionou a promotoria: “Vocês vão esperar ele me matar para esperar para fazer alguma coisa?”. O ex-marido descobriu seu paradeiro com a antiga escola das crianças, que informou para onde foram transferidas.

— Depois que a Suellen morreu, só pensei nos meus sobrinhos. Onde se alimenta quatro, sempre tem lugar para cinco, seis, por mais que eu ganhe pouco. Minha mãe já é falecida, não tinha outra opção. Se eu não ficasse, iriam para onde?” — questiona Lucielly, que planeja construir um quarto extra para deixar as crianças mais confortáveis.

Mais agressões

A pandemia do coronavírus foi um marco para o crescimento da violência doméstica, explica Samira. Com o isolamento social, o Brasil alcançou patamares recordes de crimes que ocorrem dentro de casa, em especial contra mulheres e crianças — daí o aumento de pedidos de ajuda da Polícia Militar pelo 190, dos casos de agressões e ameaças. Durante o período, muitos serviços de proteção à mulher foram descontinuados. Outros passaram a atender com restrição de funcionários e horário de funcionamento.

Em 2022, o Brasil teve ainda o menor investimento orçamentário da década, empenhado pelo governo federal, para políticas de enfrentamento à violência contra mulher, diz Samira. Por fim, outro fator crucial para o aumento dessa violência, ainda de acordo com a diretora do Fórum, foi a ascensão dos movimentos ultraconservadores na política brasileira.

— É uma tendência mundial, e o Bolsonaro é só um sintoma disso. À medida que tem um avanço de perspectivas mais progressistas sobre igualdade de gênero, de empoderamento feminino, há também uma reação forte do campo ultraconservador, o chamado backlash. É uma tentativa desses grupos de recuperarem a superioridade masculina — afirmou Samira. — Estamos falando de algo com significado prático. As mulheres estão sendo agredidas e mortas por causa desse discurso.

Fonte: O Globo 

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo